SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais; 2. O modelo de federalismo brasileiro (integracionismo/cooperação) e o texto do artigo 144, § 8º da constituição federal; 3. A autonomia municipal para constituir "guardas municipais" e a definição do serviço de organização e fiscalização do trânsito como serviço público; 4. O sistema de trânsito brasileiro e as competências dos municípios em matéria de trânsito; 5. A análise da guarda municipal sob a ótica do interesse público; 6. A Análise sob a ótica da máxima da razoabilidade; 7. A análise sob a ótica da máxima da proporcionalidade; 8. Os precedentes jurisprudenciais; 9. referências.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente ensaio pretende debater a questão da atuação dos Guardas Municipais como agentes de trânsito, bem como acerca da constitucionalidade da atividade de polícia de trânsito pela Guarda Municipal. O tema, que inegavelmente desperta acalorado debate acadêmico e institucional, traz também enorme interesse prático, na medida em que a questão relacionada à qualidade e viabilidade do trânsito seguro e ordenado, sobretudo nos caóticos espaços urbanos, representa matéria de relevante interesse público, o que justifica, inclusive, a destacada pertinência da análise que se pretende empreender.
O estudo do tema relacionado à polícia de trânsito pelas Guardas Municipais levará em consideração o regime constitucional de regência, estruturado a partir dos contornos do modelo de Estado constitucional de direito[01], bem como a análise infraconstitucional e a jurisprudência [02] construída acerca da temática.
Antes do enfrentamento do objeto central do presente estudo, cabe esclarecer que as reflexões aqui alinhadas decorreram da atuação processual do autor, na função pública de Curador Especial [03] de norma jurídica impugnada, objeto de ADI perante o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) [04], no caso os artigos 2º, "a" e 4º, IV da Lei Municipal n. 4.144/2004, do Município de São José (SC).
Segundo a inicial da ADI, os artigos 2º, "a" e 4º, IV da Lei Municipal n. 4.144/2004, do Município de São José (SC), estariam eivados de inconstitucionalidade, porquanto atentatórios ao artigo 107, I, "e" da Constituição Estadual (SC), bem como ao artigo 105 da Constituição Estadual (SC) e ao artigo 144 da Constituição Federal. Cabe, portanto, a transcrição de tais dispositivos legais e constitucionais:
Lei Municipal n. 4.144/2004, do Município de São José (SC)
Constituição Estadual
Constituição Federal
De início, vale registrar que não parece haver inconstitucionalidade nos artigos 2º, "a" e 4º, IV da Lei Municipal n. 4.144/2004, do Município de São José (SC), porquanto simplesmente dispõem acerca da instituição da Guarda Municipal de São José (SC), prevendo sua competência para promover a autuação de infratores ao Código de Trânsito Brasileiro (CTB), no âmbito das atribuições do Município, o que não configura, ao que parece, invasão de atribuições privativas da Polícia Militar (força policial estadual). Pelo contrário, engendra atribuição constitucional, legal e, sobretudo, institucional e socialmente cabível aos Municípios.
Ante a realidade brasileira atual, a questão do trânsito (in)felizmente deixou de ser matéria secundária. Trata-se de problemática das mais complexas, a exigir políticas públicas adequadas e eficientes, no sentido de promover a educação no trânsito, a viabilidade da mobilidade urbana, a diminuição da verdadeira "carnificina das vias públicas" e o "caos do trânsito urbano".
Neste cenário, infelizmente pintado com as firmes tintas da inafastável realidade, toma enorme relevo e importância o estabelecimento de sistemas de controle, fiscalização e, consequentemente, autuação de infrações de trânsito, mormente no âmbito das vias municipais. Esse é o claro propósito da política legislativa sob análise, o estabelecimento de um sistema municipal de controle, fiscalização e autuação de infrações de trânsito nas vias públicas municipais, o que não, pode, inequivocamente, ser taxado de inconstitucional.
2. O MODELO DE FEDERALISMO BRASILEIRO (INTEGRACIONISMO/COOPERAÇÃO) E O TEXTO DO ARTIGO 144, § 8º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Outra questão a ser considerada, quando da análise da presente temática, refere-se ao modelo de federalismo brasileiro. Por certo, desde muito antes da Constituição de 1988, mas, sobretudo, a partir dela, não é mais possível a defesa de um modelo de federalismo dual (dualista), havendo sim, efetivamente, um sistema federativo fundado na cooperação/integração entre os entes federados.
Cabe trazer, primeiramente, o escólio de Bernard Shwartz acerca do "federalismo dualista": "De acordo com ela, tanto o Governo Federal quanto os governos estaduais tinham destinado a eles uma área de poder rigidamente definida. Nesta visão, o equilíbrio apropriado necessário ao funcionamento do sistema federal é assegurado e mantido pela estrita demarcação da autoridade federal e estadual. Os estados e a Nação são concebidos como rivais iguais e, a menos que haja uma delimitação rígida de suas respectivas competências, teme-se que a própria União sofra uma ruptura em decorrência de sua rivalidade. Isto é verdadeiro especialmente no que se refere à expansão da autoridade federal" [05].
Este, certamente, não é o modelo de federalismo brasileiro, fundado nas dimensões de integracionismo e cooperação entre os entes federados, a partir dos parâmetros de autonomia entre os entes federados, distribuição de competências com base nos âmbitos de interesses (nacionais/união, regionais/estados, locais/municípios), participação nas decisões e cooperação.
O federalismo cooperativo é marcado por "uma mudança dos poderes de decisão nos níveis de governo - federal e federado - em benefício de um mecanismo, mais ou menos complexo e formalizado, de negociação e acordo intergovernamental. Com isso, há uma tendência de redução das políticas que sejam conduzias por um só governo, havendo uma interdependência e coordenação das atividades governamentais. Esta interdependência e coordenação têm como base uma decisão voluntária de todos os entes da federação, não se fundamentando em uma pressão hierárquica" [06].
Em vários temas de enorme relevância para a Sociedade, a Constituição Federal prevê a atuação, em regime de cooperação, dos entes federados, inclusive com o financiamento de sistemas de serviços públicos, transferências voluntárias e demais modelos de legislação, gestão e execução de serviços. Exemplos inequívocos da existência de um marco constitucional de cooperação entre os entes federados podem ser encontrados, v. g., nas previsões constitucionais de competências em matéria de saúde (artigos 22, XXIII, 23, II, 24, XII, 30, VII, 194, 195, 196, 198, § 1º e 2º, etc.), educação (artigos 22, XXIV, 23, V, 24, IX, 30, VI, 205, 211, 212, etc.), meio ambiente (artigos 23, VI, 24, VI, VII e VIII, 225, etc.).
Claro que, não se pode olvidar, a competência dos Municípios está prevista para legislar acerca de "assuntos de interesse local", bem como organizar e prestar os "serviços públicos de interesse local", conforme o artigo 30, I e V da Constituição Federal:
Sobre o que se pode entender por "interesse local", segue o escólio do jurista Michel Temer: "Os Municípios titularizam competências próprias. Di-lo o art. 30. Tudo o que disser com a administração própria no que respeite ao seu interesse local. Caracterizada a matéria como sendo de interesse local só o legislador dela poderá cuidar. (...) Doutrina e jurisprudência, ao tempo da Constituição anterior, se pacificaram no dizerem que é peculiar interesse aquele que predomina o do Município no confronto com os interesses do Estado e da União. Peculiar interessesignifica interesse predominante. Interesse local é expressão idêntica a peculiar interesse" [07].
No mesmo sentido, obtempera o sempre lembrado mestre Hely Lopes Meirelles, para quem "o assunto de interesse local se caracteriza pela predominância (e não pela exclusividade) do interesse para o Município, em relação ao do Estado e da União. Isso porque não há assunto municipal que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de grau, e não de substância" [08].
No caso do exercício de atividades de polícia, bem como especificamente na estruturação da segurança pública, não foi outra a decisão constitucional, respaldando novamente o modelo de cooperação, prevendo a possibilidade de constituição, pelos Municípios, das "Guardas Municipais":
Portanto, resta inegável que o modelo de federalismo de cooperação, conforme previsto na Constituição Federal, respalda a constituição pelos Municípios de Guardas Municipais, inclusive com a competência de organizar, fiscalizar e, ainda, autuar infrações de trânsito nas vias públicas municipais, nos termos do artigo 144, § 8º c/c artigo 30, I e IV da Constituição Federal. No caso, a Guarda Municipal está destinada à proteção (sentido amplo, organização, fiscalização e atividade de polícia em geral) do "serviço público de trânsito", de competência municipal, no que toca ao interesse local (trânsito urbano).
3. A AUTONOMIA MUNICIPAL PARA CONSTITUIR "GUARDAS MUNICIPAIS" E A DEFINIÇÃO DO SERVIÇO DE ORGANIZAÇÃO E FISCALIZAÇÃO DO TRÂNSITO COMO SERVIÇO PÚBLICO
Não se pode, quando da análise dos Municípios e suas competências constitucionais, descuidar do tratamento constitucional que lhes foi conferido pela Constituição de 1988, alçados que foram, em todos os seus contornos, ao verdadeiro status de entes federados, autônomos, juntamente com a União, os Estados e o Distrito Federal. Eis o que prescrevem os artigos 1º e 18 da Constituição Federal:
A definição do Município como ente federado, logo no primeiro artigo da Constituição, bem como a autonomia municipal assegurada pela Constituição, não podem, por certo, ser esvaziados, diminuídos ou desprestigiados para o exercício da atividade hermenêutica, sobretudo, em situações como a presente, em que uma norma municipal, claramente respaldada pela ordem constitucional (artigo 30, I e IV e artigo 144, § 8º da Constituição Federal), tem a pecha da inconstitucionalidade, ao argumento de que a guarda e a fiscalização do trânsito urbano seria competência exclusiva da Polícia Militar dos Estados (artigo 107, I, "e" da Constituição Estadual (SC)). Aceitar tal argumentação corresponde a ferir, mortalmente, o modelo de federalismo cooperativo claramente insculpido na Constituição Federal, tornando extrema e perigosamente rarefeita a autonomia dos entes municipais.
Não se pode negar que, se os Municípios detêm competência para constituir "Guarda Municipal", para a proteção (em sentido amplo) dos serviços públicos de interesse local, a competência para a "fiscalização do trânsito urbano" é inerente a tais conjuntos de atribuições, sendo, ainda, por via de consequência, inafastável a atribuição de autuar as infrações de trânsito cometidas nas vias públicas sob a fiscalização municipal.
Por certo, não há atividade administrativa de fiscalização (polícia administrativa), desprovida das prerrogativas de impor sanções (no caso autuar as infrações de trânsito)! Admitir que a fiscalização administrativa é viável sem a prerrogativa de aplicação de penalidade (poderes sancionatórios) equivale a defender a possibilidade de vôo regular às aves, mesmo sem suas asas e plumagem característica!
A caracterização do serviço de "fiscalização do trânsito urbano" como serviço público não apresenta maiores dificuldades, nada obstante ser deveras tormentosa a conceituação de serviço público, estando inclusive sujeito aos influxos do contexto político e histórico, variando por aspectos espaciais e temporais. Nesse sentido, o administrativista Marçal Justen Filho defende que "é impossível formular um conceito genérico de serviço público com aspiração de uma validade universal. Cada conceito reflete as características de um ordenamento jurídico, num determinando momento histórico" [09].
Nada obstante, pode-se tentar estabelecer um conceito de serviço público a partir de três aspectos básicos: material, subjetivo e formal. "Sob o ângulo material ou objetivo, o serviço público consiste numa atividade de satisfação de necessidades individuais de natureza essencial. Sob o prisma subjetivo, trata-se de atuação desenvolvida pelo Estado (ou por quem lhe faça as vezes). No ângulo formal, configura-se o serviço público pela aplicação do regime jurídico de direito público" [10].
Não é outro o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem serviço público "é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público" [11].
Acerca do regime jurídico constitucional dos serviços públicos, segue o artigo 175 da Constituição Federal:
Inegável, por outro lado, que o serviço de "fiscalização do trânsito urbano" deve ser considerado serviço público de interesse local, passível, portanto, de execução pelo Município, a partir da instituição de "Guarda Municipal". Isso, inclusive, é o que ressai do artigo 112, I, V e X da Constituição Estadual (SC):
A definição dos serviços relacionados ao trânsito como serviços públicos, afora sua inolvidável e inquestionável feição, que se enquadra perfeitamente ao conceito de serviço público assente na doutrina tradicional, decorre diretamente do disposto no CTB, prevendo, inclusive, as atribuições dos entes municipais, como será a seguir demonstrado.
4. O SISTEMA DE TRÂNSITO BRASILEIRO E AS COMPETÊNCIAS DOS MUNICÍPIOS EM MATÉRIA DE TRÂNSITO
Para a confirmação não somente do conceito de "serviço de fiscalização do trânsito urbano" como serviço público, mas, inclusive, a competência dos Municípios para o desempenho de tal atribuição, vale trazer à colação o disposto na Lei Federal n. 9.503/1997 (CTB):
O texto do artigo 280, § 4º é expresso em permitir, inclusive, que o servidor civil, estatutário ou celetista, atue como agente da autoridade de trânsito. Para lavrar autos de infração de trânsito!
Ademais, ante a clara disposição da legislação específica, não se pode negar que o serviço de "fiscalização do trânsito" é serviço público de competência municipal, que pode ser prestado diretamente pelo poder público municipal, mediante a constituição de "Guarda Municipal", nos exatos termos do artigo 24 do CTB c/c artigo 112, I, V e X da Constituição Estadual e artigo 144, § 8º da Constituição Federal, não havendo qualquer inconstitucionalidade nos artigos 2º, "a" e 4º, IV da Lei Municipal n. 4.144/2004, do Município de São José (SC), nem se cotejado com o artigo 107, I, "e" da Constituição Estadual (SC), e, muito menos, se contrastado com a ordem constitucional vigente, a partir do exercício de interpretação sistemática e teleológica da Constituição.
Fonte: http://jus.uol.com.br/revista/texto/19844/a-fiscalizacao-do-transito-pela-guarda-municipalEnviado pelo GCM J.Freire
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